Criar como um processo de desconstrução
Um "behind the scenes" da criação da identidade visual da marca Casa Tárr.
Em muitos diversos casos os processos me interessam muito mais que o resultado em si, com isso em mente aqui estou, nesse artigo quero apresentar todos os processos que passei durante a criação da identidade visual da marca Casa Tárr.
Para isso vou criar uma linha do tempo, tentando me lembrar de tudo de forma mais fiel aos fatos e ocorridos, então partindo do início.
1º - Necessidade.
O projeto da marca Casa Tárr é a reformulação de uma marca já existente, o Estúdio Hestia, marca que produz velas aromáticas artesanais. Os primeiros esboços da marca começam em 2020, quando criadora da marca começou a experimentar e se aventurar no mundo da criação de aromas, por mais de 1 ano, o trabalho se voltou aos testes, experimentando com diversas marcas de essência, cera vegetal, testando a queima de diversos tipos de pavios, testes em potes, para que finalmente em 2021 a marca tivesse sua própria receita, que vem se mostrando um sucesso, sempre muito elogiada pela qualidade dos aromas, pela sua dispersão em ambientes desde os pequenos, até a salas grandes com muita área a ser preenchida pelos aromas.
Inicialmente a marca se apresentou ao mercado de forma tímida, afinal essa era a primeira aventura da dona da marca como empreendedora. Porém mesmo com uma apresentação tímida os produtos se destacavam por sua qualidade, e assim se seguiu até o inicio de 2023, quando a marca começa a se aventurar em outros produtos adicionando a seu catálogo, além das velas, outros produtos como difusores, essências concentradas, e explorando criar suas velas em outros materiais para além do convencional pote de vidro. E junto com essa nova fase da marca, o antigo nome deixou de fazer tanto sentido, com tudo isso em jogo, era hora de dar mais um passo para o crescimento da marca.
O nome Casa Tárr - Aromas & House Goods, surge após diversos testes, mas o que fez com ele fosse o escolhido é primeiramente ser um nome fácil, memorável e que traz em si, a essência do que a marca acredita e faz, ou seja criar produtos para sua casa, anteriormente apenas velas, atualmente “House goods”, além da alteração do nome, surge também a necessidade de ter uma identidade visual que converse com esse novo nome.
2º - Visão geral do cenário.
Inicialmente como de costume foi feito toda uma pesquisa de mercado para que pudéssemos entender como os concorrentes se comunicavam e se apresentavam, e acredite se quiser, o mercado de aromas é extremamente conservador em sua presença online, um uso excessivo e nada empolgante de tipos serifados humanistas, com cores pouco saturadas, uma espécie de narrativa visual que fica em um local estranho, pois parece um tanto quanto infantilizada e com uma escrita que denota que tais marcas visualizam seu público apenas como consumidores. Claro que existem excessões uma que quero ressaltar é a incrível “Made in SP” marca que tem uma identidade muito consolidada, e a qual me inspirei muito. Bom a partir dessa pesquisa, já estava claro o caminho que não seguiria, todo o resultado dessa pesquisa aliado ao que no momento era o rascunho do manifesto da marca (abaixo a versão finalizada do manifesto).
“Acreditamos que momentos devam ser únicos, não os enxergamos de uma forma concreta ou definida, acreditamos que cada pessoa sente, vive e experiencia cada momento a sua maneira, no seu tempo, e com sua vivência.”
Momento vem do Latim “momentum” e uma das definições que mais conversa conosco é “Momento é um período de tempo breve em relação a outro”, “Intervalo de tempo que não é determinado; tempo breve; instante: num momento, penteou-se”.
Com o exercício de não racionalizar de forma concreta o conceito de momento nos voltamos ao mundo sensorial e abstrato, deixando de lado o racional, e abraçando o sentir dos momentos.
Através de gestos não cartesianos exploramos de forma livre caminhos, encontros e possibilidades que nos guiam entre momentos, explorando o sensorial através de texturas que se unem com linhas tortas e grosseiras que escapam pelos cantos.
Com todas as informações em mão é iniciado o processo criativo, (o terrível processo criativo).
3º - Empolgação para criar.
Durante uma das aulas do curso “Tentativas de escapatória” ministrado pelo Designer Guilherme Falcão, ele comenta com a primeira ideia que temos é aparenta ser a solução perfeita, mas logo percebemos como ela era terrível, mas tem sua função, de abrir caminho para as demais, ou seja normalmente a primeira ideia que temos é apenas para ser descartada.
A minha primeira ideia que tive foi em criar um sistema de identidade visual que existisse independente do logo, costumeiramente marcas são criadas ao redor do logo, marcas “logocentricas”, inspirado no trabalho vanguardista e audacioso do Designer Martin Lorenz, criador do livro e do modo de trabalhar “Flexible Visual Systems” comecei a esboçar e a testar, mas não estava funcionando.
A marca tem como manifesto a exploração por formas livres, logo pensar em um sistema estava totalmente na contra mão, por mais que existam sistemas visuais que trabalham com formas orgânicas, no momento isso estava além das minhas capacidades.
Logo minha primeira ideia foi descartada, o que deu lugar para outras, muitas outras, tantas que em determinado momento eu não aguentava mais pensar em formas visuais para representar momentos.
Nesse momento passei por uma das rotineiras crises de impostor, tantas ideias e coloca-las no papel e explorar elas era terrivelmente exaustivo.
4º Um plano que não se parece com um plano, mas que funcionou como um plano.
No fundo eu sempre soube que queria criar essa identidade visual com elementos feitos a mão, estava e estou enjoado de trabalhar com o digital, e nesse projeto vi a oportunidade de voltar a fazer as coisas com a mão, só não esperava que fosse tão difícil assim.
Em um desses momentos de procrastinação no Instagram, vi um projeto que imediatamente chamou minha atenção uma série de ilustrações criadas por um projeto do Reino Unido chamado intoart_uk para a marca de roupas John Smedley, ilustrações livres criadas por PCD, e mais uma vez estava ali ressaltando a ideia de fazer as coisas com minhas mão de forma analógica, agora somado com a ideia de traços e formas livres, porém logo percebi o quão difícil é trabalhar desse jeito depois de anos sendo doutrinado a buscar a perfeição e excelência, não que esse tipo de trabalho não tenho algo de perfeito ou uma excelência em si, mas o processo para criar desse modo livre, é extremamente desafiador.
Desse modo já tinha alguma direção para seguir, mas enquanto eu tentava criar a identidade pensando nesse modo livre de criar, as coisas não estavam avançando. Então deixei de lado esse processo e voltei ao que já estou habituado a fazer, então comecei a trabalhar tipografias, cores, e outros elementos de apoio.
5º Tudo menos desenho.
Sempre tive facilidade em trabalhar e escolher tipos, de imediato já sabia que não usaria algo serifado, muito menos humanista, queria uma sem serifa com atitude, então fui para a melhor foundry que preenche esses requisitos, a Velvetyne uma fundição francesa, que disponibiliza de forma gratuita os tipos, no site eu já tinha um tipo em mente a Sporting Grotesk, a tipografia que preenchia meus requisitos, sem serifa ousada, acabou que criei o logo da marca utilizando ela, mas para os demais elementos, ela não funcionou muito bem, a mancha de texto ficava muito densa e um tanto confusa, principalmente nos textos dos rótulos que são pequenos e que precisam ser legíveis.
Bom algo eu tinha feito, criei o logo, particularmente sempre achei demasiadamente prepotente marcas com logos complexos, quase símbolos de sociedades secretas, sempre tem algo escondido em algum canto, também nunca fui fã de grids que explicam os por menores dos logos, então apenas usei o tipo em bold, fazendo ajustes de kerning e entre linha, trabalhando de forma simples me baseando na altura de X, em 2023, seu logo definitivamente não é o asset mais importante da sua marca. Apenas para que não me atirem pedras, os únicos locais que acho que combina essa estética de logo complexo e com cara de símbolo de sociedade secreta é para museus, teatros, galerias enfim.
Para os demais textos recorri a foundry Fontshare, outra fundição que disponibiliza tipos gratuitos, acabei optando por uma combinação, H1 H2 H3 um tipo sem serifa a General Sans e para manchas de textos maiores, um serifada (sim acabei voltando atrás) a Gambetta. Voltei atrás e usei uma serifada, após testar as possibilidades que inevitavelmente se reduzem com o uso de apenas uma sem serifa, e acabou que tudo ficou muito formal, muito sério, tipo sala que higieniza aparatos médicos, algo meio estéril. E essa combinação funcionou muito bem, os títulos em caixa alta chamam a atenção e destacam o produto, e o texto corrido é confortável para a leitura, mesmo os textos pequenos nas embalagens e rótulos.
Sobre as cores, também foi algo mais na intuição, vendo cores e paletas que gostamos, não sou fã dessa questão de ter significados por trás das cores, tipo meu logo é azul porque quero que ele transmita calma, por mais que sim a psicologia das cores seja real e realmente haja conexão entre estimulo e reação, só não gosto, e quando posso, não uso a psicologia das cores.
Nesse momento já tinha logo, tipos, cores, tagline, outras frases, manifesto, e principalmente a sombra de trabalhar de modo analógico.
6º Ainda sem desenho, mas ele caberia aqui.
Depois disso tudo, fui criar os rótulos e embalagens, um processo que gosto muito, mas que demanda muitos testes, a antiga marca Estúdio Hestia sempre foi muito elogiada por suas embalagens, então tinha uma reputação a manter, como trabalhei com vidros cilíndricos, não tinha muito o que inventar, inevitavelmente para que seja funcional a embalagem seria um adesivo que envolveria o vidro, logo a pequena área que tinha para criar se limitava a alguns poucos centimetros.
E já parou pra pensar como é uma baita tarefa criar um rótulo ? Algo pequeno mas que deve imediatamente captar a atenção do possível cliente, um disputa muito injusta, afinal nosso possível cliente esta sujeito a inúmeros outros estímulos visuais, e é nosso dever como designer fazer o possível para que consigamos pegar essa atenção e direciona-la a nosso produto. A criação foi relativamente fácil, criar a disposição dos elementos tipográficos como nome do aroma, especificações, composição, cuidados, peso foi fácil, apenas alguns testes para garantir que tudo estava funcionando e pronto, lá estava eu com o impasse, como eu iria ilustrar o rótulo, sempre lembrava da estética infantilizada que muitas outras marcas usam, mas também não estava fácil criar desenhos seja na mão, seja apelando para o digital, não estava funcionando e eu era o responsável por isso.
Nesse momento mais uma crise veio.
Porém um perfil no Instagram me ajudou nesse momento, devo muito aos posts da Helena “Professora no curso Desenhos Feios”, a pesquisa da Helena é algo incrível, mágico, que valeria um texto só sobre isso (talvez eu o faça no futuro, pois iniciei semana passada, no seu curso Desenhos Feios).
Mas enfim, eu sofro muito com perfeccionismo, aquela velha questão que a busca pelo perfeito te impede de criar, minha família tem um total de 0 pessoas que se interessam por arte, logo minha criação nunca foi alimentada com arte, pelo contrário, sempre foi alimentada com discursos que arte é pra rico, artista é vagabundo, que só os privilegiados trabalham com o que gostam (isso é verdade), enfim um ambiente que fez tudo ao contrário no que diz respeito a estimular minha criatividade, e mesmo com todas essas adversidades na minha casa, eu ainda assim fui pro lado criativo, porém com muitos traumas.
O perfil da Helena me ajudou muito a trabalhar a questão do perfeccionismo, e a aceitar o erro, mas o resultado disso não foi criar um rótulo todo maluco com traços, cores, algo abstrato não figurativo, o resultado foi usar apenas uma cor que conversasse com o aroma, (essa parte da arte abstrata não figurativa ainda vai ter uso).
Optei por essa abordagem em todas as etiquetas, rótulos, embalagens. Me limitei a apenas uma linha de produtos limitados a criar dessa forma, uma linha onde a dona da marca cria as velas em cimento, e os rótulos limitados dessas velas terão essas explorações visuais com diversos materiais e não técnicas.
Depois disso a coisa fluiu para os finalmente, criar os padrões de postagem no Instagram, para que o perfil seja conciso e tenha um estilo próprio, para isso me inspirei muito no trabalho incrível que o Monkeybuzz faz no perfil deles, criar a papelaria foi tranquilo também, optamos em usar a letra de uma pessoa próxima a marca para a frase que está no cartão de visitas, e em alguns poucos locais, para que não se torne uma salada tipografica.
A fotografia da marca veio sem querer, no primeiro teste que fui fazer com os produtos, uma coisa se uniu com a outra, e acabei criando uma estética que conversa com um dos pontos do manifesto da marca, o sensorial através das texturas, isso resultou em fotos com um grão proeminente, trazendo muita textura as fotos, imagens cerca de 1/3 sup expostas, trazendo contraste e um tom mais sóbrio na medida certa. Ainda não testamos com modelos no momento em que escrevo esse artigo, mas acredito que não vá fugir muito disso.
7º Finalizando.
Esse projeto pode parecer que foi rápido, mas não, ele demorou cerca de 4, 5 meses, afinal sou um criativo freelancer, ou seja absolutamente tudo fui eu quem fiz, desde a pesquisa inicial as animações, aos desenhos, as fotografias, os textos, os Mockups, os testes, a programação, os outros testes, as crises, os aprendizados, os rascunhos. Criar a identidade da Casa Tárr, foi uma luta pessoal, comecei a enfrentar meus traumas que vem lá de criança, e que impactam enormemente no meu hoje, me oprimindo e me dando insegurança com minhas criações. Também foi durante a criação da identidade que me reaproximei dos trabalhos manuais, com tintas, lápis, giz, riscos, traços, formas e não formas, também fiz um dos cursos mais enriquecedores que já pude ter, o Tentativas de Escapatória do Guilherme Falcão que é dado através do espaço CC, e também o curso Desenhos Feios da Helena, que ainda estou na segunda aula, mas que tenho plena ciência que se eu me dedicar, será um ponto de mudança total na minha vida como criativo. Obrigado para quem leu tudo isso, caso queira conversar sobre me manda DM no Instagram.
8º Bibliografia
Branding - Michael Johnson
História do Design Gráfico - Philip B. Megas
The Creative Arc - Rick Rubin
Geometria do Design - Kimberly Elam
Pensar com Tipos - Ellen Lupton
A Interação da Cor - Jpsef Albers
Design Para Um Mundo Complexo - Rafael Cardoso
Politicas do Design - Ruben Pater
A Metamorfose - Kafka
Cidade Pequenina - Aldo e Camilo Solano








